O senhor participou em julho de 2019 de um simpósio internacional sobre drogas em Singapura (2nd International Symposium of Forensic Drug Testing Lab Directors). Quais temas foram tratados no evento?
Foi uma experiência que reuniu mais de 24 países do mundo inteiro. O evento tratou dos adulterantes como tema principal. Os adulterantes estão sendo usados no mundo todo em várias substâncias, quer seja a cocaína, quer seja a heroína e mesmo as metanfetaminas.
Calcula-se que as substâncias tenham de 20% a 30% de adulterantes e estes não servem apenas para aumentar o volume das substâncias ilícitas – são outras substâncias químicas que afetam o uso das drogas. Contribuem para uma série de problemas físicos e afetam o tipo de efeito psicoativo que essas substâncias têm, chegando até a aumentar as mortes por overdose.
A reunião em Singapura teve a intenção de homogeneizar o modo de identificar precocemente esses adulterantes.
Quais temas o senhor apresentou neste evento em Singapura?
Minha apresentação teve relação com os usuários de crack de São Paulo. Juntamente com David Martin e Thom Browne, temos trabalhado para identificar o que existe de adulterantes em São Paulo.
Em 2015, já havíamos apresentado que 77% das amostragens da Cracolândia tinham fenacetina, 54% tinham aminopirina e 26%, levamisol. Eram doses altas desses adulterantes. Nós repetimos a amostra em 2019, fizemos uma análise de urina da mesma área e 66% das amostras apresentaram traços dessas substâncias. Então, aparentemente, a cocaína e o crack nas ruas estão, por um lado, ficando mais puros, mas, por outro lado, continuam com altos níveis desses adulterantes.
É importante ressaltar como foi que se descobriu esses adulterantes. Nos Estados Unidos, foi observado que essas substâncias, quando usadas em corridas de cavalo, faziam com que eles corressem mais rapidamente. São substâncias legais que podem ser usadas para várias coisas. Assim, os próprios traficantes acrescentaram essas substâncias à cocaína. Há indícios de que ela aumenta o pico de euforia causada tanto pela cocaína quanto pelo crack, tendo ainda, um efeito mais duradouro. Este é o monitoramento que temos feito.
Em paralelo, no Brasil, em Brasília, o Dr. Élvio Botelho, da Polícia Federal, que faz parte do projeto PeQui – que é o perfil químico das drogas –, fez análise de grandes apreensões, mais de 20 quilos. Diferente do que fizemos com os usuários que estão nas ruas usando cocaína, ele fez o perfil de grandes apreensões nos Estados de Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. Ele verificou que, dessas amostras, 17% tinham fenacetina, 9% levamisol e 5% aminopirina, quer dizer, houve um aumento de 2015 para 2019. Ou seja, mesmo nas grandes apreensões, esses adulterantes já estão presentes.
À medida que avança o tráfico, em seus diferentes níveis, parece que cresce também o nível desses adulterantes para aumentar o bolo da cocaína. Entretanto, aumenta o risco de problemas sanguíneos, cardiovasculares – uma lista de problemas. E o Dr. Élvio mostrou que a cocaína está ficando mais pura porque, se era 91% de pureza em 2017, em 2018 mantinha-se em 88%. Tem adulterantes, mas a cocaína está ficando mais pura.
Além de mostrar esses dados dos adulterantes, a minha apresentação teve como objetivo contextualizar o consumo de cocaína do ponto de vista da saúde pública. Dessa forma, apresentei os dados dos levantamentos nacional de álcool e outras drogas do LENAD I e II, mostrando que no Brasil temos mais de 2 milhões de usuários de cocaína e maconha. Mostramos ainda a rede assistencial no Estado de São Paulo através do Programa Recomeço. E, ao final da minha apresentação, mostrei os momentos políticos que levaram à aprovação da nova Lei Nacional de Drogas no Brasil. Penso que foi muito bem-vindo pelo painel desses 24 países entender o que está acontecendo no Brasil.
Qual tema apresentado pelo senhor teve maior impacto entre os participantes do evento?
As pessoas obviamente se impressionaram pela prevalência de adulterantes na cocaína, mas isso também está presente na heroína e nas metanfetaminas. O mais impactante do que apresentei, o que as pessoas se impressionaram bastante, foram os dados de família: para cada pessoa que usa cocaína, tem-se quatro pessoas afetadas. E mostrei a rede assistencial que foi montada em São Paulo e está se encaminhando para ser montada no Brasil.
Muitos países que estavam lá não têm este nível de preocupação de montar serviços para dependentes químicos. Não é muito comum. É importante mostrar que temos essa preocupação e esse investimento para os usuários de drogas. Mesmo em relação aos colegas da América Latina (Uruguai, Argentina, Paraguai, Colômbia, Chile), estamos com nível de desenvolvimento de serviços mais organizados.
Quais os serviços para usuários de drogas que o senhor apresentou neste evento?
Apresentei tudo o que a gente fez em São Paulo, como o programa Helvetia, que é um programa com base na linha de cuidados – tudo no mesmo prédio. Já no térreo, a pessoa pode lavar os pés, tomar banho, cortar os cabelos. No segundo andar, há o serviço de desintoxicação. Terceiro andar, cozinha experimental, academia de ginástica e os vários andares acima com Moradia Assistida. No mesmo lugar, uma linha de cuidados onde a pessoa pode entrar para lavar os pés e já pode sair desintoxicada, com colocação para trabalhar – para sair de todo aquele ambiente da cracolância.
Os vários outros serviços têm, de alguma forma, a preocupação de ter a linha de cuidados, uma série de tratamentos, quer sejam as clínicas de desintoxicação, temos mais de 1.700 leitos e mais de 2.000 Comunidades Terapêuticas espalhados por todo o Estado de São Paulo. Além de visar o tratamento, visar a recuperação, a recuperação da vida social, da vida de trabalho, que é a grande porta de saída para todos esses serviços. Essa atitude, essa filosofia de trabalho tem que prevalecer. Foi bom a gente compartilhar dessa linha de cuidados, visando à reabilitação social e a criação da independência dos dependentes químicos.
Como os adulterantes adicionados às drogas de abuso têm impactado?
Os que são usados no Brasil podem prejudicar a parte sanguínea, adulterar a parte gástrica e também a parte física. Não temos estudos de quanto que isso está, na prática, impactando. Mas sabemos que a ação dessas substâncias perigosas têm grande potencial.
Parte das doenças que os dependentes químicos de cocaína e crack no Brasil estão vivendo pode estar relacionada a esses adulterantes. Precisamos de pesquisas nessa área. A gente parte do princípio de que isso está acontecendo. Não é possível que as pessoas ingiram essas grandes quantidades de fenacetina e dos outros adulterantes e não tenham algum impacto na saúde. Os dependentes químicos ficam em um tal estado, numa saúde tão precária e, às vezes, o local que está tratando acaba não sabendo que existe essa possibilidade de os adulterantes estarem contribuindo para o rol de doenças que a pessoa tem.
Outro exemplo: nos Estados Unidos, a mistura é da heroína com o fentanil. Das 70 mil mortes por overdose que ocorreram nos EUA, boa parte delas pode ter sido por essa mistura com fentanil. A mistura é, muitas vezes, mais potente que a heroína e poderia estar contribuindo para a overdose. Além disso, eles acreditam que existem outros tipos de adulterantes porque 30% das overdoses não se explicam só pela heroína e pelo fentanil. Mesmo na Ásia, onde predomina a metanfetamina, também existe a grande preocupação com vários tipos de adulterantes contribuindo para a morbimortalidade de metanfetamina.
Que novidades relevantes observou neste simpósio?
Na América Latina, predomina a cocaína; nos Estados Unidos, há uma tríplice epidemia de opiáceo, a epidemia de cocaína, a epidemia de maconha – na Europa também, na África, na Ásia tem predomínio de metanfetamina. Os impactos na saúde têm semelhanças e diferenças.
Eu penso que existe um papel dessas grandes agências. Esse simpósio foi financiado pelo Departamento de Estado Americano, pelo governo da Singapura e pelo Plano Colombo, que é uma organização que tenta colocar juntos vários atores globais no sentido de poder fazer uma política mais global.
Ficou, uma vez mais, bem estabelecido que o crime organizado é muito rápido e muda rapidamente de estratégia e que a gente vai ter que, ao menos, chegar mais perto dessas estratégias feitas pelo crime organizado. Eles não vendem só as drogas, mas vendem uma série de aditivos que podem causar um mal maior para quem consome essas substâncias.
Então, nós, profissionais, quer sejamos da prevenção, do tratamento, quer sejamos quem estabelece políticas, precisamos estar atentos a essas mudanças para tentar fazer uma política consistente e mais próxima da realidade. Por incrível que pareça, às vezes é preciso ir longe para entender a nossa própria realidade porque nossos vizinhos também não entendem o que se passa aqui.
Qual a importância de um evento como este?
O grande aspecto desse evento foi essa aproximação de pessoas que têm responsabilidade ou que têm influência em cada um desses países.
O que o motiva a trabalhar na área de dependência química?
Acredito que a gente possa fazer a diferença. É uma doença que tem grandes interesses econômicos. Deve ser salientado que o tráfico organizado, a indústria do tabaco, a indústria do álcool vivem da doença da nossa população.
Sou absolutamente feroz no sentido de que os interesses econômicos não possam superar os interesses da saúde, não possam superar os interesses individuais e os da família. Esta última que é absolutamente devastada pelo uso de drogas.
Não deixar que esses interesses econômicos superem o que há de mais valioso em nossa sociedade, que é o ambiente familiar. O ambiente onde o indivíduo possa se desenvolver e agregar valor para si mesmo, para sua própria família e para sua comunidade. A droga dificulta esse processo. E ficamos com uma sociedade mais pobre quando deixamos os interesses globais financeiros utilizar os indivíduos e as famílias para manter uma máquina perversa que é essa máquina que gira a droga no mundo.
O que representa o Obid para seu trabalho?
O Obid é uma grande esperança. Ele ficou meio subutilizado por muitos anos, mas acho que tem todas as condições no momento. Tem o apoio dos profissionais, tem diretamente meu apoio. Ele terá uma influência maior ainda na informação, na comunidade de tratamento, de prevenção e de recuperação no Brasil. Penso que o Obid tem que ser porta-voz do que existe de mais consistente, com informação de qualidade, e que as pessoas têm que se sentir com o pulso da área a seu dispor através de informações com qualidade. Acho que outros vários locais que tenham sites e também produzam conhecimento na área têm que ser aliados total do Obid e ninguém vai ser único. Quantos mais locais com qualidade, melhor para todos nós. O Obid tem que estar no centro dessa política.
Ronaldo Laranjeira é psiquiatra, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) da Unifesp. Também dirige o Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas (Inpad) e preside a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM).
Fonte: OBID (Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas) - http://mds.gov.br/obid/entrevistas/ronaldo-laranjeira